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CARNAVAL 2009
Cucumbis
Manuel Querino
O cucumbi não passava de uma recordação das festas africanas, é certo mas foi-me impossível conhecer a significação própria do vocábulo. Compunha-se de numeroso agrupamento: uns armados de arco e flecha, capacete, braços, pernas e cintura enfeitados de penas, saiote e camisa encarnada, corais, missangas e dentes de animais no pescoço, à feição indígena.
Outros, porém, trajavam corpete de fazenda de cor, saieta de cetim ou cambraia, com enfeites de velbutina azul e listras brancas, num estilo bizarro, acomodado ao divertimento.
Os instrumentos consistiam em pandeiros, ganzás, checherés ou chocalhos, tamborins marimbas e piano de cuia (cabaça enfeitada com contas).
Os cucumbis ensaiavam as suas diversões em determinados pontos, como fosse: largo da Lapinha, Terreiro de Jesus e largo do Teatro, sob as frondosas cajazeiras que aí existiam.
No trajeto iam cantando:
Viva nosso rei,
Preto de Benguela
Que casou a princesa
C'o infante de Costela.
Respondia o grupo indígena:
Dem bom, dem bom,
furumaná;
Catulê, caia montrué
Condembá.
Além dos instrumentos acima indicados, certos personagens conduziam os seus grimas os quais no final de cada estrofe se cruzavam dois a dois.
O bi iáiá, o bi ióió,
Saravudim, sarami, saradô.
Ao pronunciarem a silaba dô era o som abafado pelo choque dos grimas, batendo uns de encontro aos outros. Em seguida, davam voltas e trejeitos ao corpo, repetiam o canto e os mesmos movimentos.
Chegados ao ponto determinado, começava a função:
Cum licença auê
Cum licença auê
Cum licença de Zamblapongo,
Cum licença auê.
Em meio da festança, um indígena era acusado de haver enfeitiçado o guia, que devido a essa cirscuntância, se achava em estado mortal.
Discutido o assunto com alacridade, o feiticeiro se entusiasma e canta em tom autoritário:
Tu caté gombé
Tu está gombê.
Chaco chaco,
Mussugaué.
O diá sambambê:
Matê, ô matê ô!
Vida ninguém dá.
Compenetrado do seu valor, e solicitado para mudar de resolução, o feiticeiro se delibera a curar o guia, que simula agonizante.
Para isso, no meio de grande algazarra, toma de uma bolsinha e com ele toca levemente as pernas e os braços do doente, dando movimento desordenado ao corpo, entoando cantigas lúgubres. Ao depor a bolsinha ou contra-feitiço nos lábios do guia, este recobra os sentidos, e todos se entregam às maiores expansões de regozijo. Os nacionais se afeiçoaram tanto ao cucumbi que conseguiram imitá-lo vantajosamente, intercalando nos cânticos vocábulos da língua vernácula, sem, contudo, desvirtuá-lo.
Oliveira Lima — No seu livro Aspectos da literatura colonial brasileira, à página 101 — descreve uma dessas folganças, no século XVIII, do seguinte modo:
"Andavam as touradas estimadas a par dos sermões, mas a animação do regozijo algum emparelhava-se com a que reinava na festa de São Gonçalo de Amarante, celebrada a pouca distância da cidade (Itapagipe). Nas danças desenfreadas em derredor da veneranda imagem tomava parte o vice-rei, de parceria com os cavaleiros de sua casa, os monges e os negros.
Desapareciam as distinções sociais nessa saturnal cristã, à qual serviam de incomparável cenário as matas frondosas, onde à palida claridade das estrelas e ao som mavioso das violas o amplexo dos sexos atingia proporções de demência animal.
Três dias acampava o governador do Brasil numa linda parte do bosque e, em sua presença, festivamente alternavam-se, como as copiosas refeições, os hinos sacros e as comédias profanas.
(Querino, Manuel. "Cucumbis". A Tarde. Salvador, 04 de julho de 1957)
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